sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Amor inesquecível

O que é o luto?

   Há alguns meses atrás, ainda eu estava no 11º ano, a professora de psicologia propôs um exercício, no qual teríamos de trazer um objecto que nos definisse em algum aspecto da nossa vida ou personalidade. Podíamos também não trazer nada, caso o objecto não fosse de dimensões apropriadas, ou caso "aquilo" que nos tinha ajudado a formar a nossa personalidade não fosse um objecto, e sim uma pessoa, um acontecimento ou uma emoção. a maioria das minhas colegas de turma acedeu ao exercício e nessa aula dispensaram-se bastantes lágrimas, tanto da parte de quem falou como da parte de quem ouviu o discurso de cada uma.
   Eu fui das poucas colegas que não quis participar no exercício, porque, para mim, na altura, era difícil dizer o que tinha a dizer. Era-me ainda muito difícil desabafar sobre aquele assunto, ainda para mais com as minhas colegas, porque eu ainda não tinha uma sensação de aceitação geral.
   Mas, se a professora de psicologia deste ano voltasse a propôr o mesmo exercício, tenho quase a certeza de que não teria qualquer problema em colocar-me à frente da turma e falar. Apenas acho que não teria muito sucesso, que iria ficar sem voz por causa das lágrimas, ou que seria um dos discursos mais longos no seio daquela turma. e eu não gosto de massacrar as pessoas à minha volta com assuntos extensos, que seria o caso do meu. Mas na minha cabeça, já tive esse mesmo discurso vezes e vezes sem conta...

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   Eu sou o arrependimento em pessoa.
  Costumo dizer que uma pessoa só se deve arrepender do que não faz, e isto não é excepção. Eu sou o arrependimento em pessoa por coisas que devia ter feito ao longo dos últimos anos, e não as fiz. E sinto-me ainda mais culpada de só me ter dado conta de tudo quando o pior já tinha acontecido.
   Quando se sabe que não há maneira de fazer o tempo voltar atrás, é quando mais nos parece que perdemos o nosso chão.
   O meu avô faleceu no dia 30 de Setembro de 2012 - o funeral foi no dia a seguir, numa segunda feira. Faltei o dia todo à escola para poder estar com a minha família. Ele era a melhor pessoa que eu alguma vez conheci - e não digo isto apenas porque faleceu; se ele hoje estivesse vivo e à minha frente, eu diria-lhe exactamente a mesma coisa.
   Nos últimos anos, foi a companhia da minha avó, e sempre houve muito amor entre ele e os seus filhos - a minha mãe e o meu tio. Quanto aos netos, bem, eu sou a mais velha, o do meio tem hoje 17 e o mais novo tem 14. A sua morte custou a todos, apenas não parece isso porque cada um de nós faz o seu luto à sua maneira. Eu e os meus primos, juntamente com o meu tio, temos tendência a esconder as emoções fortes de toda a gente. A minha mãe e a minha avó, hoje em dia, também fazem o mesmo; no entanto, na altura, todos os dias choravam as suas saudades, cada uma na sua casa.
   Eu sou o arrependimento em pessoa, porque podia ter aproveitado muito mais tempo o que tive com ele, porque podia ter criado espaço para ter mais tempo, porque podia ter crescido mentalmente mais rapidamente para poder acompanhar o seu bom pensamento e os seus bons conselhos. Fui, literalmente, uma ignorante, porque não fiz nenhuma dessas coisas.
   Quando o meu avô teve o seu primeiro AVC, eu deveria ter uns 11 ou 12 anos. E eu lembro-me de pensar que, se os meus primos estavam todos os dias em casa dos meus avós, e moíam-lhes o juízo a ambos, seria melhor eu ficar mais sossegada, porque não queria que as minhas brincadeiras parvas de criança lhe provocassem qualquer tipo de mal. Tanto pensei nisto na altura, que o fiz; apenas devo tê-lo feito em exagero. Só perto dos 17 anos é que comecei realmente a ter uma relação muito mais próxima do meu avô: sabia de que assuntos falar com ele, sabia o que fazer quando ele tivesse um ataque à minha frente, sabia que não devia teimar com ele e corrigi-lo quando ele estivesse confuso nas datas de antigamente (essa era uma das consequências dos seus ataques). Durante anos, a família teve presente em mente o que o médico tinha dito: o meu avô poderia, ou não, viver muitos mais anos, mas, enquanto vivesse, iria sempre ter pequenos AVC's, até ao dia em que tivesse um AVC grave, tão grave que seria o cessar do funcionamento do seu cérebro. Sabíamos que era provocado por um tumor no cérebro que não podia ser operado por estar entre os hemisférios, ao meio pela horizontal, portanto, só nos restava aproveitar o tempo que tínhamos com ele, apesar de não sabermos a medida desse tempo.
   Foi horrível. O meu avô teve esse AVC fatal a 26 de setembro de 2012, entre as 20h e as 21h - não me recordo deste pormenor. Foi levado para Vila Franca de Xira, e ficou lá internado, no S.O. (ou lá como se escreve ou diz),  até à madrugada em que faleceu.
Durante esses dias, a minha mãe e a minha avó visitavam-no todos os dias, durante a meia hora que podiam. E durante esses mesmos dias, ambas massacravam-me com perguntas: mas porque é que não o vais ver? Porra, és sempre a mesma teimosa, o teu avô pode estar mal, mas de certeza que lhe fará bem ver-te, não, sua egoísta? Mal? O meu avô estava todo entubado, não se mexia, não falava, apenas ouvia, e com o passar dos dias, até a capacidade de movimentar as órbitas ou abrir as pálpebras se perdeu. Fazer-lhe bem? Ele não me iria reconhecer. E se reconhecesse, seria apenas uma experiência dolorosa para ambos. Dentro da minha cabeça só se ouviam gritos divididos, um grande dilema: um dos gritos seria vai vê-lo, não sejas parva, pode ser que recupere e que isto não passe de um susto, e se não fores, vais arrepender-te, e se calhar a tua mãe tem razão ao dizer que isso lhe fará bem, e outro, desesperado, apenas dizia não! Não vais, porque se ele for desta para melhor, vais ter para sempre queimada no teu cérebro a imagem de um avô entubado e a definhar, e isso vai ser pior para ti, e para ele, caso te reconheça e saiba que te vai deixar em breve.
   Fiz a vontade à minha segunda voz, e muito sinceramente, disso não me arrependo: prefiro lembrar-me dele como ele era, não com tubos numa cama de hospital. O meu primo mais velho queria vê-lo, mas aconselhei-o a não ir, dizendo os mesmos motivos que me impediam de o ver. Penso que ele está agradecido por esses conselhos. O mais novo não o quis ver, nem quis entrar na sala do velório - a minha avó saiu de lá para lhe dar um abraço em que ambos choraram, e essa foi a primeira vez que chorei pelo que estava a acontecer.
   O dia do funeral foi o pior. O meu primo mais novo não quis ir (e ainda bem!), e eu estive sempre do lado do meu primo mais velho, à excepção da cerimónia da encomendação do corpo e no crematório.
   O que mais me enfureceu foi o padre. Eu fui baptizada, mas não sou praticante - não me quero comprometer a qualquer tipo de religião, mas não deixo de respeitar a existência de cada uma. O meu avô detestava o assunto das religiões, pelo facto de que foi educado num convento onde as freiras, pelo que fui sabendo, não o tratavam bem.
   Mas adiante, o padre, credo... Aquele padre não faz missa para ninguém, apenas faz a encomendação do corpo. E o que mais me irritou - que me irritou ao ponto de eu sair do velório ainda a meio do seu discurso - foi ouvi-lo dizer que havíamos de perdoar o mal que ele, o meu avô, tinha feito em vida. E eu ao ouvir isto, pensei, sério? A sério que ele está a dizer que o meu avô era pecador e que fez mal em vida?. Eu não sei todos os pormenores da vida do meu avô nem o que ele fez durante toda a sua vida, mas não acredito que ele fosse pecador, não no significado que essa palavra tinha para aquele padre.
   O meu avô chegou a ser torturado pela PIDE, e no entanto, nunca fez nada relacionado com retaliações ou vinganças contra quem lhe fez mal. Sempre ajudou quem conhecia quando lhe pediam ajuda, nunca pediu nada em troca. Sempre foi justo, não julgava ninguém, não fazia juízos prévios e deu o benefício da dúvida, mesmo a quem não merecia, mesmo sabendo que no futuro podiam trair-lhe a confiança. E aquele homem chamava pecador ao meu avô? Não aguentei, larguei a mão da minha mãe e vim-me embora para a rua, a chorar baba e ranho, a querer acender um cigarro enquanto tremia que nem varas verdes - mais parecia estar a ter uma convulsão. O rapaz com quem mantenho uma boa amizade desde o 1º ano de escola (já lá vão 16 anos) seguiu-me para me abraçar - tenho uma pequena noção de que ficou com a camisola manchada das minhas lágrimas - , dizer umas palavras doces como bom amigo que sempre foi, e despedir-se, porque já nem ele aguentava o discurso do homem.
   Só no crematório é que vi a cara do meu avô no caixão, minutos antes de ser cremado. E assim que o vi, sentei-me por um minuto, e foi então que corri para a rua - foi nesse preciso momento que tive um género de break-down. Quando vi várias pessoas a saírem de lá, afastei-me ainda mais; sabia que se a minha mãe me visse naquele estado, ela ficaria com o coração ainda mais partido.
   Quando saímos do cemitério, já com as suas cinzas, as coisas acalmaram. Desde aí que o assunto Avô João quase nunca é falado, simplesmente evita-se para que a família não tenha de sofrer mais do que o necessário, ainda que aqui em casa as coisas sejam um pouco diferentes - as cinzas ainda aqui estão, e todos os dias passo pelo pote azul-escuro, sabendo quem está ali.
   A minha mãe ainda me diz que sente que ele não morreu, que lhe parece que ele simplesmente foi de férias, e na verdade, também eu sinto isso, pelo menos durante a maioria do tempo, só que... Todos os dias penso nele, e não me envergonho de dizer que quando penso nele à noite, quando estou sozinha no sótão e não estou a falar com ninguém na net, choro, porque lembro-me de como ele estava todos os dias, durante todo o dia, na cozinha, sempre a ler, ou então lembro-me de ele me apontar as suas grandes unhas, que foram uma promessa que ele e o seu compadre da tropa fizeram, ou então lembro-me de ele me chamar vira-casacas porque dizia que eu na verdade era do Sporting e não do Benfica... Lembro-me até que uma das últimas conversas que tivemos foi acerca do livro Os Maias - aconselhou-me as melhores partes a ler, mas nunca me disse sobre o que é que o livro era, apenas dizia que eu iria gostar de o ler (e não é que tinha razão?).
   Eu sou o arrependimento em pessoa.
   Podia ter aprendido muito mais com o meu avô, e não o fiz. É verdade que aprendi muitas coisas com ele, que tal como ele, também eu tenho o vício da leitura. É também verdade que, se não fossem as suas boas palavras, provavelmente teria uma má relação com a minha mãe desde o divórcio e teria seguido por piores caminhos.
   Podia ter tido uma melhor relação com ele durantes os anos em que eu já tinha maturidade suficiente para tal, e não me esforcei tanto quanto devia ter esforçado.
   Podia ter sido uma melhor neta e ter-lhe dado melhores e mais motivos de orgulho, mas sinto-me um fracasso, porque não basta sentirmos orgulho dos nossos antepassados, devemos sempre corresponder-lhes pelos melhores motivos.
   Estou bastante contente de ter passado os meus primeiros anos de vida ao seu lado, e de o ter conhecido da maneira como conheci.
   Mas mesmo assim... Continuo a ser o arrependimento em pessoa.

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   Já é 27 de Setembro de 2013, e daqui por 3 dias será o primeiro aniversário do falecimento do meu avô. Nem gosto de dizer que é o aniversário do seu falecimento, parece-me uma palavra de celebração, e isto não é caso de celebração - antes pelo contrário. Todos os dias sinto a sua falta, e de perguntar à minha avó, então, como é que 'tá o avô?
   No dia anterior ao meu aniversário deste ano, tatuei no meu pulso esquerdo a palavra family, com um bigode por baixo, a imagem de marca do senhor João Santos, uma promessa feita quando a minha avó estava grávida da minha mãe - se fosse uma menina, ele deixaria crescer um bigode e nunca mais o iria cortar em definitivo (apenas o aparava quando necessário). Nunca eu fiz algo em mim que me deixasse tão orgulhosa como esta pequena tatuagem.
   Tenho muitas saudades dele, imensas.
   Quando se sabe que não há maneira de fazer o tempo voltar atrás, é quando mais nos parece que perdemos o nosso chão - não sei se perdi o meu chão ou se apenas caí; mas se caí, sei que tenho um anjo para me ajudar a levantar.


   O luto é uma má experiência pela qual todos passamos eventualmente, mas representa o mais belo dos amores, seja ele de que género for.
   Representa um amor inesquecível, pelo qual choramos quando lembramos a pessoa amada, perdida, consumida pelo tempo, e que - falando egoísticamente - nunca nos devia ter sido retirada, à força, sempre demasiado cedo.

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